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Imagem: Jacobin

Por Gabriela Leite

Ítalo Ferreira, primeiro brasileiro a ganhar medalha de ouro em
Tóquio, em 2021, nasceu em Baía Formosa, cidade de uns 9 mil
habitantes no Rio Grande do Norte. Filho de vendedor de peixe, pegava
emprestada a tampa do isopor de seu pai para surfar no litoral
potiguar – tomando cuidado para não pegar grandes ondas, que
poderiam destruir a prancha improvisada. Se hoje é possível –
embora bastante raro – a vitória de um filho de trabalhador, da
periferia do capitalismo, em Jogos Olímpicos, entre as décadas de
1920 e 1930 este fato era corriqueiro. Neste período, ocorreram as
Olimpíadas de Trabalhadores. Organizadas por socialistas e
comunistas, foram uma resposta notável aos jogos tradicionais,
criadas em 1896 pelo barão de Pierre de Coubertin.

A prática de esportes, então, era, na virada do século XIX para o XX, restrita às classes altas. Servia para propagar valores do conservadorismo. O célebre barão, fundador do Comitê Olímpico Internacional, é uma boa figura para entender os ideais burgueses da época. O nobre francês acreditava na superioridade racial europeia, e se atormentava com a ideia da participação feminina nas competições. Para ele, a mulher era “acima de tudo companhia para o homem, a futura mãe de família”, e deveria “ser criada tendo esse destino em mente”. Embora sustentasse “ideais internacionalistas”, Coubertin não hesitou em elogiar o grande êxito das Olimpíadas de Berlim, de 1936, saturadas de imagens da suástica e de saudações nazistas: “o grandioso êxito dos Jogos de Berlim contribuiu de modo magnífico para com o ideal Olímpico”

Mas, ainda nos primeiros anos do século XX, desenhos de jogos
olímpicos dissidentes conseguiram bagunçar o coreto. Começaram a
despontar organizações de trabalhadores para a prática coletiva de
esportes e embriões de competições maiores. Até que, em 1920,
representantes de organizações esportivas proletárias da Alemanha,
Inglaterra, Bélgica, França e Áustria se reuniram para formar uma
associação internacional. Assim foram criadas as Olimpíadas dos
Trabalhadores, que aconteceram de maneira intermitente entre os anos
1925 e 1937, em diversos países da Europa.

A alternativa socialista para as olimpíadas burguesas não fazia a separação por países – hasteava-se apenas a bandeira vermelha. Nas primeiras edições, que aconteceram em fevereiro e julho em cidades da Alemanha, compareceram mais de 150 mil pessoas, entre atletas e público. O número foi superado em 1931, na Áustria, quando 250 mil espectadores acompanharam o evento protagonizado por 100 mil esportistas – dez vezes mais que no Rio-2016 ou Tóquio-2021. A explicação para o disparate é simples. O evento era aberto e contava com a participação em massa, não chamava apenas “os melhores”.

Essa foi a edição mais emblemática das Olimpíadas dos
Trabalhadores. Aconteceu em Viena – à época, uma das maiores
fortalezas do movimento socialista. “Milhares de atletas de dezoito
países se reuniram na capital austríaca para participar de
competições em modalidades como atletismo, futebol, esportes
militares (como cabo de guerra…) e até xadrez. Os exercícios de
ginástica em massa, desfiles e outros eventos reuniram cerca de 80
mil participantes”, conta matéria
assinada por Gabriel Kuhn e Georg Spitaler, na revista Jacobin
Brasil
. A edição popular superou tanto em número de atletas
quanto de espectadores à comercial, sediada àquele ano na cidade de
Los Angeles, nos EUA.

Os jornalistas retomam o espírito da época: “O movimento esportivo dos trabalhadores representava um contra-modelo pedagógico aos esportes organizados por burgueses e capitalistas – tanto os jogos organizados pelo Comitê Olímpico Internacional quanto as ligas esportivas profissionais, como fizeram no futebol. Nessa visão, os danos e os limites impostos à vida da classe trabalhadora pelas más condições de vida e de trabalho deveriam ser contrabalançados pelo desenvolvimento físico individual e pela formação coletiva de uma identidade de classe autoconfiante.”

A edição seguinte dos jogos olímpicos – da burguesia –
aconteceria em 1936. O contexto político de ascensão do nazismo fez
com que uma organização comunista, Sportintern, formada a partir da
associação esportista de trabalhadores, se levantasse em protesto.
Eram tempos da Revolução Espanhola. Aproveitando a vitória
eleitoral da frente de esquerda na Catalunha, elegeu-se Barcelona
como sede da versão antifascista das Olimpíadas. Foram recebidas
com tanto entusiasmo pelo público mundial que a data de início teve
de ser adiada. Esperavam-se exilados alemães e italianos, e um time
judeu foi criado especialmente para o acontecimento.

O comitê de organização clamava pela participação das mulheres –
preteridas nos jogos tradicionais. Os participantes eram financiados
por sindicatos e vaquinhas. Como nas edições anteriores, atletas
acomodariam-se nas casas de família da classe trabalhadora, em
prédios públicos ou em acampamentos. A delegação espanhola foi
apresentada lado a lado com times próprios catalães, bascos e
galegos. Mas os jogos olímpicos populares daquele ano acabaram não
acontecendo.

“Em 18 de julho de 1936, enquanto milhares de atletas de todo o mundo chegavam a Barcelona para os jogos do dia seguinte, um golpe de estado foi realizado pelas forças conservadoras e fascistas espanholas. Os jogos foram cancelados e quase todos os atletas que conseguiram chegar foram mandados de volta para casa. Cerca de 200 estrangeiros, entre atletas, seus representantes e espectadores, decidiram ficar e lutar ao lado dos catalães e espanhóis, ingressando posteriormente nas Brigadas Internacionais”, conta matéria da revista britânica Red Pepper.

As últimas olimpíadas populares aconteceram em 1937 na Tchecoslováquia e na Bélgica. As edições seguintes, de 1943, seriam recebidas em Helsinque, na Finlândia (Tóquio, aventada, rejeitou o convite), mas foram canceladas após o início da II Guerra Mundial. Ao contrário das lucrativas olimpíadas burguesas, os jogos populares não conseguiram se reerguer no pós-guerra.

Em 2016, os Jogos Olímpicos ocuparam as ruas, praias, ginásios e estádios do Rio de Janeiro. Enquanto contribuíam para aprofundar as desigualdades da cidade, intensificar a especulação imobiliária e reprimir manifestações, registravam a marca de evento mais lucrativo para o Comitê Olímpico Internacional em 120 anos: apenas com a venda dos direitos de transmissão dos jogos, por 19 dias, foram arrecadados 4 bilhões de dólares. Já as patrocinadoras principais tinham, juntas, valor de mercado de mais de U$ 1,5 trilhão. Cifras que provavelmente encheriam de orgulho seu criador, o barão de Coubertin.

Como nos anos anteriores à II Guerra, nos deparamos com o dilema:
torcer ou não torcer por atletas que apoiam o governo de Jair
Bolsonaro, que confraterniza com nazistas, considera indígenas uma
“raça” inferior e foi responsável pela morte de mais de 550 mil
pessoas numa pandemia. E pior: como alegrar-se tranquilamente com a
realização de um evento internacional durante uma crise sanitária
que exige medidas de distanciamento que, caso ignoradas, podem criar
novas variantes de um vírus mortal? Antifascistas, feministas,
populares e politizadas, as Olimpíadas Populares podem servir de
inspiração de celebração da cultura e do esporte sem render-se ao
dinheiro e à espetacularização a qualquer custo.

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