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Roberto Pereira D’Araújo, em entrevista a Antonio Martins

MAIS
> O texto a seguir foi construído a partir de entrevista com Roberto Pereira D’Araújo. Acesse também as versões em vídeo (link acima) ou podcast (abaixo).

> O projeto Resgate, por meio do qual Outras Palavras quer debater ideias-força para a reconstrução do Brasil em novas bases, pode ser conhecido aqui.

Um novo
aumento
nas contas de energia elétrica estorvará os
brasileiros, já às voltas com forte inflação de alimentos, a
partir deste mês. Em vinte anos, desde o desmonte do antigo “sistema
elétrico” público, as tarifas residenciais subiram 60% acima
da inflação
; as industriais,
162%. Agora ocupam,
segundo a Agência Internacional de Energia (IEA), os segundo lugar
entre as mais caras do mundo, perdendo apenas para as da Alemanha.
Mas ainda assim, os riscos de racionamento
não estão afastados. Nem o de se multiplicarem os apagões, que são
cada
vez mais frequentes
desde 2008 e deixaram o Amapá às escuras
por mais
de uma semana
, em novembro do ano passado.

Nossa
matriz energética é cada vez mais suja: as fontes fósseis, cujo
uso era residual até 1998, já respondem por mais
de 26%
da energia gerada e sua participação não
para de crescer. Em 21
de junho, o Congresso aprovou
proposta do governo Bolsonaro para que
esta marcha rumo ao fundo do poço escorregue mais um degrau. Se não
houver resistência, a Eletrobras, último marco de uma rede geradora
invejada em todo o mundo há poucas décadas, será vendida até
fevereiro
.

O
que levou o Brasil a regredir tanto, e tão velozmente? Quais
os caminhos
para reverter a queda? Em 28 de junho, o engenheiro Roberto
Pereira
D’Araújo, um dos diretores do
Instituto
Ilumina

falou
a Outras
Palavras
a
respeito. Sua entrevista, enriquecida por demonstrações com
gráficos e tabelas, compõe o projeto Resgate
um
esforço para debater
a
reconstrução do Brasil em novas bases, realizado
em parceria com a Fundação
Rosa Luxemburgo
.
Há boas notícias. Está em curso uma revolução tecnológica na
geração de energia, que torna cada vez mais eficientes e baratas as
fontes limpas, em
especial a solar fotovoltaica
. Por suas características naturais
e de território, o Brasil é um dos países que mais pode tirar
proveito
das
transformações técnicas.
E elas abrem espaço, também, para reverter a predominância quase
total das grandes obras. É possível gerar parte relevante da
energia em pequenas propriedades rurais, ou mesmo no telhado de
residências.
Se a regulamentação for favorável, esta possibilidade pode reduzir
drasticamente as contas de luz domiciliares e gerar renda – em
favor da agricultura familiar ou de cooperativas agrícolas, por
exemplo.


também dois enormes obstáculos a superar – a
privatização e os “ajustes fiscais”. A
primeira entregou um setor altamente estratégico a corporações e
fundos financeiros interessados essencialmente em retirar o máximo
de receita dos consumidores. Os segundos achataram,
mesmo durante
os governos
de esquerda, o investimento público. A
fala de D’Araújo pode ser resumida esquematicamente nos pontos
a seguir —
ainda que correndo o risco de simplificar seu pensamento.

1.
Numa época em que o mundo
todo busca gerar mais energia e fazê-lo a partir de matrizes
energéticas limpas, o Brasil pegou a partir de 1995 uma contramão
esdrúxula. À época, éramos um dos poucos países do mundo a
produzir eletricidade com uso marginal de combustíveis fósseis.
Planejado no governo JK, construído a partir de João Goulart e
ampliado durante os governos militares, o chamado sistema elétrico
público tirou proveito de uma singularidade brasileira: uma rede
fluvial incomparável,
que faz as quedas d’água
moverem turbinas sem gastar combustíveis e sem poluir o ar. A
descrição deste sistema e suas virtudes foi feita de maneira
magnífica por César Benjamim, num longo artigo publicado pela
revista Caros Amigos em
2001 e disponível hoje aqui.
Roberto D’Araújo, um dos especialistas que informou a pesquisa de
Benjamin, lembra-se do assombro que suas falas provocavam no
exterior, sempre que descrevia, em palestras,
a rede geradora brasileira.

2.
Desde o pós-Constituição de 1988, porém, o Brasil viveu o
estrangulamento do gasto público, provocado pela crise
financeira da dívida externa e pela virada
política para o neoliberalismo. O
sistema elétrico público perdeu os investimentos de que necessitava
para corresponder ao crescimento do consumo. A crença, então
predominante, nas supostas virtudes dos mercados, para regular a vida
social, levou à solução apresentada à época como “moderna”:
privatizar. O sistema foi fatiado, pois era grande demais para ser
vendido por inteiro. Hoje, capitais privados controlam seus três
processos
essenciais: geração (onde comparecem com 60%), transmissão (85%) e
distribuição (quase 100%).

3.
Fez-se o caos. A mesma
matéria de Caros Amigos aponta
como o desmembramento do antigo sistema elétrico público levou ao
grande
a
pagão”
de
2001
. Cada empresa privada atuante no setor tinha como objetivo
lucrar ao máximo. Mas ao agir em nome do interesse próprio, elas
prejudicavam outros integrantes da rede. Era como se, num corpo
biológico qualquer, cada órgão passasse a agir levando em conta
apenas preservar-se ao máximo, o que certamente levaria à morte do
organismo.

4.
Os governos de esquerda, que começam
logo a seguir, compreendem
o drama. Mas não são
capazes
de romper com o neoliberalismo fiscal e a compressão do investimento
público. Sobrevém então, conta
D’Araújo, uma fase
híbrida, em que o Estado tenta coordenar os agentes privados do
setor sem, no entanto, romper com sua lógica disfuncional. O
braço financeiro desta política é o BNDES, que financia boa parte
dos investimentos privados. O outro é a
Eletrobrás – que não foi privatizada e continua a ser a maior
empresa geradora da América Latina. Seguindo a lógica então
predominante, ela atua como sócia minoritária – e,
em especial, como fornecedora de seu vasto conhecimento –, para um
conjunto de investimentos corporativos.
Talvez o emblema
desta época seja Belo Monte, que
gerou conflito com indígenas, ocupação desordenada e devastadora
do município de Altamira (PA), graves danos ambientais, revolta
entre setores progressistas da classe média urbana de outras regiões
e um enorme desgaste da imagem das hidrelétricas.

5.
A privatização da
Eletrobras, tentada por Temer e agora por Bolsonaro, é talvez o
movimento mais torpe desta história. Se concretizada, ela privará o
Estado brasileiro do instrumento que lhe resta para dar algum
regramento à geração energética. E, pior: dará a agentes cujo
objetivo principal é lucrar ao máximo o controle sobre a maior
parte dos rios brasileiros. Sua vazão, devido à opção do país
pela energia hídrica, está regulada, em todo o território
nacional, por represas. Se operado em favor do Comum, o sistema evita
secas e cheias e ajuda a
regular a diversidade
climática e pluviométrica do país. Nas mãos de corporações que
pensam acima de tudo em seu interesse próprio, ele pode produzir o
caos.

6.
Duas novidades – uma no
plano da tecnologia, outra no das ideias
– podem reverter o
pesadelo. A primeira é o enorme avanço das energias limpas. A fonte
solar voltaica (que não produz
aquecimento, mas
eletricidade), em especial, está a ponto de se tornar a
mais barata e mais produtiva
.
No Brasil, um dos países mais ensolarados do mundo, a privatização
caótica relega-a
a menos
de 1%
do total gerado. Mas em outras condições, ela pode ter
duas enormes vantagens.

Como
as células geradoras são compactas,
até pequenas área rurais, ou residências,
podem gerar energia e integrá-la às redes de distribuição. Na
Alemanha, conta D’Araújo, o Estado subsidia esta geração,
recompensando os que a fazem com um bônus sobre o que produzem. No
Brasil, a distribuição privada faz o contrário: reduz, por meio de
várias formas de desconto, o que deveria pagar aos pequenos
produtores.

E
a energia solar fotovoltaica
também pode ser produzida em
grandes áreas.
D’Araújo faz as contas. O avanço tecnológico permitiria gerar
toda a energia hoje consumida no Brasil em painéis que ocupariam
metade da superfície de Sergipe. Talvez
seja uma superfície menor que a soma das áreas das represas de
hidrelétricas. Mas, imagina
D’Araújo, é possível
pensar uma solução
integrada. Implicaria instalar
placas solares móveis
sobre os reservatórios
hídricos já existentes. A energia fotovoltaica gerada seria
conduzida às redes de transmissão das próprias hidrelétricas,
reduzindo os investimentos necessários. E, ao contrário de outros
países, o Brasil não precisaria inutilizar parte relevante de seu
território com a instalação de grandes fazendas solares.

7.
A segunda novidade bem-vinda é o declínio do neoliberalismo fiscal.
Por décadas a Ásia, e em especial a China, o transgrediram, sempre
com êxito notável. Agora,
sob Joe Biden, o rechaço ao chamado “consenso de Washington”
começa no próprio país de onde ele surgiu. Os EUA estão mostrando
que,
ao contrário da lenda neoliberal, os Estados não estão limitados,
como as famílias, a “gastar apenas o que arrecadam”. O
investimento público pode ser
uma
ferramenta
potente para assegurar serviços sociais de excelência,
desmercantilização da vida, renovação da infraestrutura,
transição agroecológica,
geração de empregos dignos. Um Brasil pós-Bolsonaro estará
disposto a fazê-lo? O projeto Resgate
aposta
que sim. O diálogo com Roberto D’Araújo mostra que é
perfeitamente possível – e mais que necessário.

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