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Por Gustavo Assano (*)

Por vezes, uma cena de um filme se incrusta na cabeça do espectador por muito tempo, um impacto que obriga o espectador a investigar como tamanho efeito foi suscitado. A cena final de Phoenix (2015), do cineasta alemão Christian Petzold, é um desses casos. Escrito por Petzold em parceria com seu mentor, Harum Farocki, adaptado do romance Le retour des cendres [O retorno das cinzas] de Hubert Monteilhet, Phoenix se passa no rigorosamente imediato pós-Segunda Guerra, em Berlim. Uma judia sobrevivente de Auschwitz, Nelly Lenz (nome que lindamente alegoriza a ideia de nova primavera), é resgatada por uma companheira. Nos últimos esforços de tentativa de “queima de arquivo” no campo antes da chegada dos Aliados, Nelly leva um tiro no rosto e sobrevive. Desfigurada, a primeira providência da companheira é levá-la para um cirurgião plástico, que lhe devolve a feição humana, mas falha em reconstituir o rosto antigo. Ganha um rosto parecido com o de Nelly, mas não é exatamente o rosto de Nelly.

Berlim é uma cidade em ruínas, começam os terríveis dois anos de “reconstrução”, entre 1945 e 1947. Bairros inteiros estavam reduzidos a escombros por bombardeios que borraram qualquer senso de elevação moral no “justiçamento” que levou à derrocada do nazismo – os libertadores humanistas, os mocinhos, os heróis das democracias ocidentais que derrotaram o Behemoth são os mesmos que bombardearam Dresden sem nenhuma justificativa militar e apresentaram o mundo à bomba atômica. Círculos sociais estavam destroçados, fotografias de antigas reuniões de amigos revelam ser apenas a sombra passada e melancólica de “pessoas normais” cuja verdade revelada no presente é a condição de desaparecidos, ex-nazistas, delatores, executados e sobreviventes perseguidos. As ruas tornaram-se um campo de batalha por sobrevivência de pedintes, prostitutas, traficantes, agiotas, aproveitadores maltrapilhos de toda sorte, diferentes classes que viveram a organização do sonho fascista são amontoadas como lúmpens zanzando pelas ruínas de um país colapsado, de ordem social implodida, de economia tornada virtualmente inexistente senão pelo escambo, contrabando e roubo. No entanto, as pessoas percorrem as ruas buscando alívio, refúgio, algum resquício de lusco-fusco de normalidade remanescente. Todos evitam falar da velha ordem, ninguém quer pensar sobre o que ela é, a solução é agir pensando que a vida pode voltar ao normal. O desejo pela vida como era antes é transformado em tabu, pois significaria admitir que o horror era fonte de alegria. Uma vergonha estranha, conformada por um recalcamento estúrdio, embota as novas relações, um desejo por um retorno a uma normalidade que nunca foi normal, de quem só pode sonhar com um passado sem rosto, pois confrontá-lo significa admitir que não há refúgio no tempo ou no espaço para o pesadelo sem fim que se tornou a realidade presente, filha da anterioridade que agora só pode ser idealizada – não é à toa que o nazismo sobrevive ideologicamente mesmo após sua derrota militar. Uma sociedade inteira engasgada pelo desejo cego por página virada, pela prova de que o pior já passou, que podemos voltar a viver sem terror, culpa ou vergonha. Soa familiar?

Nelly, que antes da guerra era cantora, reencontra o marido, Johnny Lenz, antes um compositor, agora um garçom que trabalha na boate Phoenix, um cabaré que recebe soldados americanos e quem tiver qualquer vintém para trocar por bebida, mulheres e diversão fácil. A espelunca recebe pequenos números musicais burlescos com canções de Hollywood da última temporada. Cantando Cole Porter e afins, os frequentadores tentam esquecer a ruína que cerca a boate. O espetáculo rebaixado permite tanto americanos como alemães fingirem que a realidade é suportável. Johnny teria sobrevivido às perseguições da polícia política por ter delatado a esposa. Quando Nelly finalmente o encontra, ele não a reconhece, vê no semblante dela o rosto de uma doida estranha que apenas lembra a esposa, certamente falecida. É então que ele tem uma grande ideia: pegar a estranha e fazê-la passar-se pela esposa diante das autoridades do novo estado a ser configurado para que então possa reivindicar as indenizações contra as prisões políticas do regime derrotado. Nelly encanta-se com a ideia, pois então poderia agir como se fosse uma versão de si mesma do passado, e teria de novo ao seu lado o marido que fingiria ser seu companheiro que tanto sentiu falta e que tanto lhe deu alento quando desceu ao inferno abominável dos campos. A vida de mentirinha lhe parece aceitável, pois finalmente ela realizaria o sonho aspirado por toda essa sociedade, poderia agir como se fosse a pessoa que um dia foi.

A cena final consiste num jogo teatral que Johnny quer realizar para convencer os amigos de que a esposa, certamente morta, sobreviveu e retornou dos campos. Num primeiro momento, Nelly tenta tornar realista a composição da cena, tenta relatar o que viu e viveu. Mas Johnny descarta com rispidez a ideia, pois ninguém quer ouvir dessas narrativas sem catarse, que revelam apenas horror infinito e sem sentido, além de tornarem impossível o desenho de final feliz do reencontro entre a judia perseguida e a vida normal de volta para casa. Ensaiam um retorno dramático de cena de filme de Hollywood, em que a mocinha chega na estação e abraça com ternura o marido. Reúnem alguns amigos íntimos e, quando fazem a cena, tudo parece ir bem, as pessoas parecem realmente acreditar que estão diante de Nelly, e Johnny se alivia pela charlatã seguir com competência o roteiro arranjado.

No meio de um convescote com os amigos, ela pede que o marido toque ao piano uma canção, para que pudesse cantar como nos velhos tempos. Johnny se desconforta com a proposta, pois não sabe se a parceira golpista realmente sabe cantar, mas segue o improviso para não arruinar o golpe em andamento. Ela reúne os amigos num pequeno salão e pede ao marido que toque “Speak Low”, canção composta por Kurt Weill e conhecida pela voz de Cole Porter (remetendo às distrações do cabaré Phoenix). A cena é de uma beleza espantosa. Nada menos que assombrosa. É estruturalmente semelhante à cena final de Luzes da cidade, de Chaplin. Assim como há um abismo infinito entre o vagabundo e a jovem vendedora de flores cega, há um abismo infinito entre Johnny e Nelly. No filme de Chaplin, a cegueira da jovenzinha serve de mediação para transpor um abismo social: o vagabundo é erroneamente identificado pela cega como um milionário. Ele não corrige a confusão da moça e chega a roubar dinheiro para pagar pela operação que daria a ela a visão. Ele é preso, serve a pena por seu crime e então retorna para encontrá-la. Slavoj Zizek, em sua análise do filme para o documentário The pervert’s guide to cinema (2006), de Sophie Fiennes, organiza de maneira didática a composição desta cena. Segundo o filósofo esloveno, a mocinha ama o milionário, o vagabundo está “fora das coordenadas de sua fantasia”. Neste sentido, pode-se antecipar uma cena violenta, em que a decepção da mocinha resultaria no escárnio e abandono do falso milionário. Mas não é isso que acontece. Daí a genialidade espantosa da cena, uma das mais magníficas cenas de reconhecimento da história das artes cênicas ocidentais. Após ser troçado por alguns moleques entregadores de jornal, a ex-cega ri do vagabundo, que não percebe que é observado. Ele xinga os meninos, vira-se, e então reconhece a moça, que o fita. Ele entra num estado catatônico, fica olhando para os olhos da moça como um bocó no meio da rua. A moça acha fofo a paixonite do mendigo, infantiliza-o, trata o encanto do vagabundo como piada. Num ato de gentileza descompromissada, lhe oferece uma rosa branca, e num ato de piedade pequeno-burguesa, lhe oferece uma moeda, que é recusada pelo vagabundo. Ele tenta ir embora, desconversar, evita prolongar a interação por saber seu lugar social. A moça insiste e ele aceita a flor, mas recusa o dinheiro. Ela então pega em sua mão e coloca a moeda na palma do vagabundo. Ao tocá-lo, é ela que fica pasma. Tateia a mão, o ombro e o rosto, gestos concentrados magníficos que revelam o nascimento da consciência, rememorando o ato de perceber o mundo antes de ter olhos, e então cai em si. Ela finalmente pode ver a verdade. “você pode ver agora?”, ele pergunta. “Sim, agora posso ver”, ela responde. Finalmente ela o reconhece pelo que realmente é. É um momento extremamente arriscado artisticamente, como Zizek também aponta, pois poderia dar errado na mão de qualquer outro diretor, um momento patético que poderia receber tratamentos convencionais e insossos. O amado sai do campo de coordenadas idealizadas da amada, ele é finalmente exposto em sua nudez total: aqui estou como realmente sou. É então que a genialidade de Chaplin se manifesta: o filme acaba. Não sabemos o que vai acontecer, não sabemos se existe final feliz. Aparece a cartela “The End”, a tela fica preta, mas a música continua. Na interpretação que seguimos de Zizek, é como se a emoção fosse forte demais. Ela transborda para além do frame da tela. Em outras palavras, a superação da alienação não pode ser narrada, não pode ser filmada. O mundo revelado, a cegueira finalmente transposta, é uma experiência de forma não configurada.

É exatamente esta estrutura que Petzold reproduz, mesmo que sem perceber. Johnny está cego para o fato de que está realmente diante de sua esposa. Quando Nelly começa a cantar, execução impressionante da atriz Nina Hoss, ele acompanha ao piano o canto da suposta charlatã, aos poucos estranhando a voz que escuta. A cena é filmada num simples plano-contraplano, Johnny observando sua cantora e Nelly concentrada em sua performance. Os olhos de Johnny a percorrem, a atuação extraordinária de Ronald Zehrfeld constrói de maneira paulatina uma perscrutação incomodante em seu olhar, como se estivesse aos poucos colocando as peças no lugar. Quando Nelly chega nos versos “Eu sinto que o amanhã está próximo/Que o amanhã é aqui/E chega sempre cedo demais”, com o plano em seu rosto, o acompanhamento do piano se interrompe – o extremo oposto da solução chapliniana. Ao invés do transbordamento da emoção pelo excesso musical, Petzold nos dá o estranhamento da interrupção da música. O verso ganha uma ênfase poética poderosíssima. Desfazendo o jogo entre plano e contraplano, um novo frame aparece, focado no braço esquerdo de Nelly, deixando revelar involuntariamente a tatuagem de identificação dos campos de concentração, a marca eternizada do holocausto sobre milhões de corpos viventes e incinerados, a marca da vergonha que os sobreviventes daquele inferno foram obrigados a carregar, a prova incontornável de que o pesadelo é real, que não há página virada, que o horror perseguirá a todos nós décadas a fio, mesmo aqueles que não estavam lá. Enquanto a câmera expõe a tatuagem, persiste o silêncio. De volta ao jogo do plano-contraplano, corta-se para o rosto perturbado de Johnny, olhando transfixo para o braço da performer. Nelly continua a cantar, agora sem o piano. Seguem os versos:

O tempo é tão velho

O amor é tão breve

O amor é ouro puro

E o tempo, um ladrão

É tarde, querida, é muito tarde

A cortina cai

Tudo se acaba

Cedo demais

Cedo demais

Eu espero…

O impacto do reconhecimento é organizado por absolutamente todos os elementos colocados em movimento: os planos da montagem, a canção comentando a consciência formada do personagem, o olhar dos atores, a duração das pausas, o sentido configurado pela unidade da narrativa como um todo, o sentido do autoengano como condição para a tal “página virada”, a revelação da artificialidade do happy end, o absurdo por trás da ideia de “retorno à normalidade”. Johnny finalmente se dá conta não apenas de que estava fazendo a própria esposa agir como ela mesma, como também percebe que Nelly não é mais aquela Nelly de antes. Que algo se transformou dentro dela, que ela traz dentro de si mutilações impossíveis de serem narradas, que a Nelly de sua encenação era uma boneca sem nada dentro, mas é diante desta mutilação que acontece o confronto com a verdade. De repente, a morte do sonho pela “volta da normalidade” se torna o fim da cegueira, a superação da alienação, um tipo de libertação. E, assim como o filme de Chaplin, não existe cena seguinte. Nelly interrompe a canção, e, numa escolha genial de Petzold, ele mantém o plano no enquadramento que capturou a performance da canção enquanto a personagem caminha para fora do frame, desfocando-se, saindo do plano da mentira para aquele plano que não pode ser filmado, pois não há como capturar imagens do ainda não vivido do ponto de vista da vida falsa. Nelly despede-se da falsa narrativa, aquela que dizia que suas marcas poderiam ser apagadas e esquecidas.

* Gustavo Assano é doutorando em Teoria Literária e Literatura Comparada na Universidade de São Paulo e pesquisa teatro há mais de dez anos.

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