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Deraldo chegou em São Paulo vindo do Nordeste. É um poeta popular, que vende suas poesias e folhetos pelas ruas da metrópole. Sobrevive disto. Num destes dias, foi confundido com um operário que matou seu patrão durante a festa em que recebeu o título de operário padrão. O filme O Homem que Virou Suco, de João Batista de Andrade, relata a história da resistência do poeta contra a opressão social e os ataques a suas tradições originárias. O filme lembra muito a trajetória do trabalho no Brasil.

Há cem anos, a resposta política dos tenentistas ao excedente da força de trabalho rural às necessidades do capitalismo nascente (1888-1930) foi além do projeto original de proletarização urbana. A inédita modernização capitalista materializada entre as décadas de 1930 e 1980 trouxe consigo a elevação do horizonte de expectativas coletivas ao Brasil real, viabilizado que foi pelo acesso à identidade da carteira de trabalho e categoria profissional validada pelo pertencimento à estrutura sindical e à cidadania regulada por direitos sociais e trabalhistas.

Em apenas 50 anos, a sociedade do trabalho salarial regulado almejada pelo projeto urbano e industrial saltou de apenas um a cada dez ocupados para quase seis em cada grupo de dez empregados. A vitalidade do crescimento econômico impulsionou o emprego urbano, consolidando a integração nacional e o mercado interno de consumo inimaginável até então.

Mas, para isso, o Estado liberal vigente no começo do século passado, fundado na promoção da violência contra as massas sobrantes da sociedade, se metamorfoseou na organização do setor público potencializador do progresso econômico material e das oportunidades de inclusão social pelo emprego nos diversos setores econômicos. O denominado emprego sólido, sustentado pelo mínimo dos direitos sociais e trabalhistas (Consolidação das Leis do Trabalho – CLT), floresceu na década de 1930 para refluir na chegada do receituário neoliberal nos anos 1990.

A longeva perspectiva de pôr fim à Era Vargas finalmente ganhou corpo nos governos dos Fernandos (Collor, 1990-1992 e Cardoso, 1995-2002), apoiando-se no vetor da desproletarização dos ocupados. O projeto do empreendedorismo, em que cada ocupado se assume a condição de pessoa jurídica, descolado dos direitos sociais e trabalhistas, andou rapidamente pelo estímulo governamental à terceirização, ao micro empreendedor individual, entre outras formas que foram convertendo o antigo emprego sólido em crescentemente líquido.

As políticas de desregulação da legislação social e trabalhista e de flexibilização do mercado de trabalho se mostraram substanciais para o avanço do processo de desproletarização da classe trabalhadora. Concomitantemente, deu-se o curso da desmodernização capitalista no Brasil, cujo emprego líquido expressa o desmanche da sociedade do trabalho salarial regulado, sem mais acesso à identidade da carteira do trabalho e da categoria profissional.

Do mesmo modo, o emprego líquido esvaziou o horizonte de pertencimento à cidadania regulada pelo acesso aos direitos sociais e trabalhistas, e esvaziou ainda mais o acesso à estrutura sindical e justiça laboral. Para um país que tinha um trabalhador sindicalizado a cada três no final dos anos 1980, impacta saber que atualmente somente um a cada dez trabalhadores se encontra filiado ao sindicalismo do país.

As consequências da passagem do emprego sólido para o emprego líquido são muitas e de diversas dimensões. A começar pelas formas de lutas que transitam da ação hierárquica das categorias profissionais, movidas por mobilizações coletivas e greves.

No sentido que passa a dominar o emprego e salário líquidos, a organização laboral se apresenta, em geral, não hierarquizada, patrocinada por espontaneísmo e horizontalismo. Na maioria das vezes, a explosão de revoltas e rebeldias, quando não de motins, expõe o conteúdo de multidões com interesses diversos mobilizados por redes sociais e centralidade de representação de interesses coletivos.

A fragilização da legitimidade se alastra no interior das próprias instituições de representação de interesses do mundo do trabalho. A ruína do emprego sólido rebaixa o horizonte de expectativas, fazendo com que a correria das massas sobrantes por ocupação do tempo com a generalização do emprego líquido predomine.

Simultaneamente, o reconhecimento de todo o esforço de pouco vale, gerando quase nada, que não seja o compromisso pela sobrevivência. Sem horizontes de expectativas elevadas e renovadas, as multidões de sobrantes do capitalismo declinante no país correm o sério risco passado de serem desconsideradas da agenda de liquidificação nacional.

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