Escolha uma Página

Imagem: Araquém Alcântara

Quando ainda ensinava medicina, assumi a aula de História da Medicina para os alunos do primeiro ano. A aula ocorria sob a forma de um seminário onde cada grupo era responsável por um momento da história. Percorríamos então o itinerário cronológico que estabelece um cordão umbilical entre todas as medicinas desde a dos povos da floresta, que até hoje são fonte de novos medicamentos oriundos dessa intimidade da inteligência humana com a natureza, até a medicina atual e seu tremendo poder tecnológico.

E passeávamos pela medicina chinesa, indiana, egípcia, judaica, grega, romana, árabe, a europeia do renascimento, entrávamos pelo mundo colonial brasileiro e percorríamos a medicina do século XIX, e a do século XX, onde a medicina nazista figurava como uma mácula de desumanidade e crueldade, (vale dizer que as apresentações aí eram comumente acompanhadas de lágrimas e de perplexidade) e seguíamos viagem para o século XXI e a tentativa recuperação pela medicina do seu caráter relacional e humanista indo além do cientificismo sujeito-objeto legado por uma certa autossuficiência diagnóstica e terapêutica decorrente da explosão tecnológica do século XX, que erroneamente nos fez parecer todo-poderosos.

Ao fim construíamos a síntese desse esforço que para além das conquistas, sempre teve na medicina nazista o contraponto do que jamais poderíamos nos deixar modelar ou inspirar. Víamos nessa síntese que a bondade da medicina e seus méritos não estão nela mesma, mas no uso que fazemos dela. E que, embora todas sejam fruto da prática humana, seu uso poderia conter o suficiente para que fosse conduzida para caminhos diabólicos.

Nessa síntese sempre fazia questão de lembrar que a profissão mais representada no partido nazista alemão era a médica e que para além dos que participaram diretamente no extermínio de judeus, ciganos, comunistas, portadores de deficiência física e mental, comumente precedido de “experiências clínicas” muitos outros justificavam em suas cátedras essa xenofobia e racismo. E sempre levava os alunos a responder, não a mim, mas interiormente à pergunta guia para que se mantivessem no campo luminoso da arte médica: – Se você vivesse no nazismo, por que você não seria parte disso? Ou: – Por que não eu?

Portanto, como em tudo que é feito por mãos humanas, também a medicina pode ser objeto de mal uso ou de bom uso a depender da vontade que guia o profissional e a força interior que o move no sentido de jamais se curvar ao que é incompatível com a profissão, aliás desde Hipócrates.

O julgamento de Nuremberg que condenou alguns dos médicos mais diretamente envolvidos no inenarrável foi historicamente sucedido pelos códigos de ética em pesquisa e pelos códigos de ética profissional que inexistiam antes disso. Portanto, a medicina também venceu o nazismo e trouxe dele lições e normas para que tudo aquilo jamais se repetisse. A vitória específica da medicina sobre o nazismo com a sua nova codificação ética de caráter oficial e obrigatório lhe devolveu legitimidade completa para, depurada daquela mácula, continuar seguindo viagem como arte de curar ou ars curandi.

As autoridades responsáveis devem entender que depurar a medicina não é vingança, é defender a sua dignidade e permitir que possa carregar a sua bela história de conquistas de cabeça erguida. Tingida de luta do Bem contra o Mal, a vitória da medicina sobre o nazismo não é um fato histórico passado, é realidade atemporal que torna sempre e sempre atual o Código de Nuremberg.

Toda essa história de conquistas e adversidades revela, portanto, a grandeza e a importância maior da profissão médica que se confronta por um lado com esse acervo extraordinário de conhecimentos e experiências humanas e por outro com o cotidiano real de quem sofre por doenças de todo tipo e deseja encontrar no profissional médico a esperança ao menos de atenuar o seu sofrimento. Quando carregada de dignidade completa, a vida profissional obriga a médica e o médico a ter que integrar conhecimento e compaixão como nenhuma outra. Luta épica onde a objetividade científica e a subjetividade do coração não podem ser separadas.

São as médicas e médicos que têm que dar más notícias a entes queridos de pacientes já sem chances de sobreviver ou que faleceram, tomar decisões difíceis sobre vagas em terapia intensiva, enfrentar dificuldades materiais de toda sorte para dar ao seu paciente chances de curar-se, enfrentar incompreensões de familiares frustrados com resultados que mesmo não responsabilizando o profissional são assim entendidos… Não é fácil o labor, mas é grandioso e sempre será!

Para além das questões específicas à profissão e sua história podemos também olhar o horizonte das áreas comuns à medicina e às outras profissões da saúde, como a epidemiologia, a saúde pública ou a pesquisa científica.

Precisamos nesse país, que tenta sair da pandemia de Covid-19, de um novo esforço coletivo em torno das questões de Saúde, no seu sentido mais largo de bem-estar físico, mental e social. Precisamos revisitar o fim do século XIX quando emergia a epidemiologia de John Snow, a bacteriologia de Pasteur e a Medecine Urbaine francesa, mãe do Urbanismo e da Saúde Pública e fortalecer o nosso Sistema Único de Saúde.

Esses desafios nos apontam para obrigações civilizatórias para com os mais pobres que vêm sendo rasgadas nesses últimos anos quando tantos voltaram a ter fome, mas também quando tantos estão feridos pela exclusão social, problemas que interessam a medicina como saber e como profissão desafiada pelo processo Saúde/Doença e pela Promoção à Saúde!

Ao tempo que parabenizo as médicas e médicos pelo nosso dia, exorto a todos para assumirmos a bandeira do fortalecimento do SUS e a da construção das respostas aos desafios postos pela dura realidade enfrentada pelos brasileiros, sobretudo pelos mais pobres.

The post Medicina e a cura de um Brasil em frangalhos appeared first on Outras Palavras.