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Por José Geraldo Couto, no Blog do Cinema do Instituto Moreira Salles

Se há um gênero que se destaca, nítido, no cipoal de títulos da 45ª Mostra de Cinema de São Paulo, é o documentário. Basta um punhado de filmes para atestar a vitalidade e a variedade da produção documental de hoje no mundo. Vamos a alguns deles, sem mais delongas (lembrando que já falamos na semana passada de dois outros: O garoto mais bonito do mundo e Transversais.)

Sr. Bachmann e seus alunos (Alemanha), de Maria Speth

Ganhador dos prêmios do júri e do público no Festival de Berlim, é um dos grandes filmes da mostra, não apenas na extensão (três horas e meia), mas principalmente pela riqueza humana contida nele. Quase tudo se passa numa sala de aula, a da última série do primeiro grau de uma escola de Stadtallendorf, na Alemanha, voltada para alunos imigrantes ou filhos de imigrantes. A partir dali eles irão para o ensino médio (com vistas à universidade) ou para a escola técnica.

A relação do Sr. Bachmann do título com seus alunos e alunas, todos na idade difícil entre os treze e os quinze anos, passa não tanto pela transmissão de conhecimento, mas pelo aprendizado recíproco da convivência, da troca de experiências, do respeito ao diferente, do estímulo às potencialidades individuais e à consciência coletiva. Uma espécie de ideal “paulofreiriano” em ato.

São adolescentes oriundos de famílias da Turquia, do Cazaquistão, da Romênia, do Marrocos, etc., incluindo a filha de uma brasileira. Alguns deles, até um ano antes, não falavam uma palavra de alemão.

Impossível saber o quanto há de encenação nas situações apresentadas. A primeira sequência já expõe essa ambiguidade: os alunos entram duas vezes na sala; a segunda é para corrigir algum erro técnico da primeira. Mas depois disso a diretora de certa forma consegue tornar sua câmera “invisível” e tudo flui com um frescor e uma espontaneidade admiráveis.

A situação toda ganha uma densidade humana e política maior quando, numa visita ao museu local, ficamos sabendo que durante o nazismo a cidade de Stadtallendorf foi sede de indústrias bélicas que usavam trabalho forçado de “imigrantes” trazidos dos países ocupados pela Alemanha. A escola, portanto, faz parte de um movimento de compensação histórica, ou pelo menos serve como símbolo de uma política inclusiva possível.

Regresso a Reims (França), de Jean-Gabriel Périot

Outro acerto de contas com o passado, na esperança de entender melhor o presente. A partir do livro autobiográfico do filósofo e escritor Didier Eribon, o livro traça uma história da classe trabalhadora francesa na segunda metade do século 20 de uma maneira estimulante e original: sob a locução em off, com trechos do livro de Eribon lidos por uma atriz, imagens de arquivo (documentários, reportagens, filmes de ficção) ilustram, comentam ou problematizam o texto do autor, ele próprio filho de várias gerações de operários franceses.

A linha de argumentação é de que a frustração com a esquerda tradicional empurrou nas últimas décadas os trabalhadores para o populismo de direita e mesmo de extrema-direita. Uma das questões mais polêmicas é a oposição do antigo Partido Comunista Francês à entrada de imigrantes no país, bandeira hoje (e sempre) vinculada à direita xenófoba. As ideias de Eribon podem ser discutíveis, mas a fricção entre texto e imagem (à maneira do que acontecia, por exemplo, no brasileiro Viajo porque preciso, volto porque te amo, de Karim Ainouz e Marcelo Gomes) produz momentos luminosos e não raro incômodos.

O circo voltou (Brasil), de Paulo Caldas

O Circo Spadoni viaja de São Paulo a Major Isidoro, no sertão de Alagoas, cidade-natal de seu diretor, José Wilson Moura Leite, fundador do célebre Circo-Escola Picadeiro. Neste envolvente road movie vamos conhecendo a trajetória do mestre Zé Wilson e de vários membros da sua família e da sua trupe, ao mesmo tempo em que acompanhamos o relacionamento fugaz e intenso da caravana com as populações dos locais por onde passa – incluindo um quilombo e uma terra indígena.

A par da celebração do circo como espaço de alegria, liberdade e fantasia, há a descoberta, pelos olhos de um menino (Pedro, filho de Zé Wilson), de um Brasil profundo, que respira e pulsa como um organismo vivo.

Outros documentários

Jane por Charlotte (França), de Charlotte Gainsbourg. A atriz Charlotte Gainsburg reencontra sua mãe, a cantora e atriz Jane Birkin, e ambas tateiam o passado buscando refazer os nexos de suas vidas, rememorando as relações de Jane com seus filhos e ex-maridos (John Barry, Serge Gainsburg, Jacques Doillon). Com delicadeza, sobre o pano de fundo da indústria cultural e das transformações nos costumes das últimas cinco décadas, emerge aos poucos uma singular relação mãe-filha, bem como uma reflexão sobre a própria maternidade no meio artístico-cinematográfico.

Já que ninguém me tira para dançar (Brasil), de Ana Maria Magalhães. A trajetória efêmera e fulgurante de Leila Diniz (1945-72), contada em primeira pessoa por sua amiga atriz Ana Maria Magalhães. O filme, que começou a ser feito nos anos 1980, costura cenas da própria Leila em cinema, televisão e teatro de revista, com depoimentos de pessoas que conviveram com ela dentro e fora do trabalho: Domingos Oliveira, Paulo José, Marieta Severo, Nelson Pereira dos Santos, Maria Gladys, Hugo Carvana, Luiz Carlos Lacerda, Nelson Sargento, etc. Nunca ficou tão claro o papel libertário da atriz no terreno dos costumes e da sexualidade – e como isso era uma força subversiva no contexto de repressão política e moral da ditadura militar.

Tempo Ruy (Brasil), de Adilson Mendes. Mais do que um documentário sobre Ruy Guerra, é um ensaio cinematográfico com o diretor moçambicano-brasileiro. Em conversas filmadas em sua casa e em seu jardim, o cineasta fala de sua relação com o cinema, com o Brasil, com Glauber Rocha (a contragosto), com Gabriel García Márquez, com o próprio envelhecimento e a perda dos amigos de sua geração. As imagens de arquivo entram com sutileza e precisão, e os diálogos são ao mesmo tempo íntimos e respeitosos, deixando que o cineasta se revele tanto pelo que diz como por seus gestos e seus silêncios. Uma bela estreia do historiador do cinema e pesquisador Adilson Mendes no longa-metragem.

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