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Entre as preciosidades disponíveis nos canais de streaming há pelo menos cinco filmes de uma das cineastas mais vigorosas e interessantes de nossa época, a francesa Claire Denis. Seus dois primeiros longas-metragens, Chocolate (1988) e Dane-se a morte (1990), estão no Mubi. Três outros, de sua fase madura, podem ser vistos na plataforma gratuita do Sesc: Desejo e obsessão (2001), Minha terra, África (2009) e Deixe a luz do sol entrar (2017), que comentei quando foi lançado nos cinemas.

“Fase madura” é uma expressão incorreta no caso, porque Claire Denis já estreou com a segurança de uma veterana. Basta ver a desenvoltura e a sutileza com que abordou em Chocolate um tema complexo: pelos olhos de uma menina, a vida de uns poucos brancos europeus em Camarões, numa época de descolonização dos países africanos antes dominados pelos franceses. Tratava-se de uma ficção levemente autobiográfica: filha de um funcionário do governo francês, Claire cresceu em diversos países da África: Camarões, Senegal, Burkina Faso, Djibouti.

Entra aí a questão, hoje tão em voga, do “lugar de fala”. Qual é o lugar de fala de Claire Denis? Claire Denis é uma mulher. Uma mulher branca. Uma mulher branca francesa. Uma mulher branca francesa que cresceu na África. Uma mulher branca francesa que cresceu na África e estudou economia e cinema em Paris. Uma mulher branca francesa que cresceu na África e estudou economia e cinema em Paris e trabalhou como assistente de direção de cineastas como Wim Wenders, Jim Jarmusch, Dusan Makavejev e Costa-Gavras. Faltou dizer que ela teve poliomielite na infância e passou a adolescência tratando da doença na França.

Tudo isso moldou a sensibilidade e o olhar da diretora. Lugar de fala, como se vê, não é um ponto fixo e imutável. Está sempre em movimento e transformação. A obra de Claire Denis é a prova viva disso.

Curiosidade pelo outro

Seu segundo longa, Dane-se a morte, mantém-se no contexto pós-colonial, mas inverte a equação: em vez de brancos na África, concentra seu foco em dois negros vivendo em Paris, um deles oriundo do Benin (Isaach De Bankolé), o outro (Alex Descas) das Antilhas francesas ou Índias Ocidentais. (Nas legendas do Mubi, este último é incorretamente apresentado como “indiano”.)

O ambiente em que eles trafegam é o submundo das brigas de galo. Empresários gananciosos, contrabandistas espanhóis, apostadores ciganos, especuladores europeus orientais, mafiosos asiáticos, é no meio dessa gente variada e perigosa que os dois amigos têm que aprender a se virar defendendo a pele e a alma.

Dos pontos de vista visual, dramatúrgico e narrativo, tudo muda de um filme para outro: da paisagem rural do primeiro para a ambientação metropolitana do segundo; dos enquadramentos abertos de paisagem para os planos fechados, em que não raro os próprios corpos dos personagens aparecem fragmentados; do ritmo contemplativo à câmera frenética e à montagem nervosa; do olhar delicado e curioso da infância para a consciência plena e cansada da brutalidade do mundo.

Essa maleabilidade dos métodos de abordagem e exposição corresponde a uma inquietação permanente, ao desejo de descobrir e compreender o outro.

“Estou interessada na variedade da vida humana, em como as pessoas vivem”, disse a própria Claire Denis. “Estou mais interessada nos indivíduos e em como eles respondem a desafios ou a dificuldades, ou simplesmente uns aos outros. Tenho curiosidade pelas pessoas. O cinema deve se concentrar em existências ordinárias em situações e lugares eventualmente extraordinários. É isso o que me motiva de verdade.”

Mundo em convulsão

A abertura para o outro, a porosidade às várias experiências e aos vários lugares onde a câmera se instala, encontra talvez seu ápice em Minha terra, África, em que uma francesa (Isabelle Huppert), dona de uma fazenda de café num país africano em guerra civil, insiste em ficar na região apesar de todos os perigos e da opinião contrária do próprio marido (Christophe Lambert).

Com uma montagem elíptica e uma narrativa feita de avanços e recuos no tempo, o filme monta um quadro instável em que sentimos a vibração de forças contraditórias, bem como a precariedade da razão convencional num contexto de convulsão social, política e cultural. O que faz uma mulher franzina e branquinha como Isabelle Huppert no meio de um semelhante turbilhão? O título original, White material, com o sentido de produto ou mercadoria dos brancos, ganha um tom irônico quando pensamos nos personagens europeus colhidos no meio da guerra.

Como em todos os seus filmes, Claire Denis recusa aqui uma narração didática, explicativa. Em sua construção lacunar, o espectador é instigado a preencher as elipses, a construir os nexos. Nenhuma situação é explicada de antemão, assim como nenhum personagem é apresentado inteiro. Um exemplo eloquente, em Minha terra, África, é o do filho adolescente (Nicolas Duvauchelle) da protagonista. De início indolente e inofensivo, ele se transforma num perigoso praticante da violência mais bárbara e amoral.

Vampiros modernos

Numa filmografia essencialmente realista como a de Claire Denis, um filme como Desejo e obsessão pode parecer quase uma aberração. Nessa envolvente história moderna de vampiros, protagonizada em Paris por um cientista norte-americano (Vincent Gallo) e uma francesa (Béatrice Dalle), a mistura de ciência, sexo e terror poderia fazer pensar em Cronenberg, mas o que importa, no fundo, é o que está sempre em primeiro plano no cinema da diretora: as relações interpessoais, o entrechoque de corpos e culturas.

A melhor definição desse cinema é dada pela própria Claire Denis: “Acho que meus filmes são feitos de ternura e amor por seres humanos, mesmo quando eles podem ser muito brutais”. Sem paternalismo, sem complacência, sem concessão: amor em estado bruto.

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