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Por José Geraldo Couto, no Blog do Cinema do Instituto Moreira Salles

Por um capricho do acaso estão em cartaz nos cinemas três filmes brasileiros que, cada um à sua maneira, borram as fronteiras entre os gêneros e, sobretudo, entre realidade e ficção. São eles o carioca O Rio de Janeiro de Ho Chi Minh, o pernambucano Seguindo todos os protocolos, em cartaz nos cinemas do IMS, e o mineiro Rua Guaicurus.

O mais ambicioso deles, em termos de amplitude temática, é O Rio de Janeiro de Ho Chi Minh, de Cláudia Mattos. É o que se poderia chamar de falso documentário, por usar uma estrutura de pesquisa histórico-biográfica para narrar uma ficção: no caso, a amizade entre um cozinheiro negro brasileiro, Sebastião Luiz dos Santos, conhecido como Faca Cega, e o líder vietnamita Ho Chi Minh.

A narrativa é conduzida pelo ator e diretor Luiz Pilar, que seria neto de Faca Cega e estaria colhendo dados e depoimentos sobre o avô e sua relação com Ho Chi Minh. A diretora Cláudia Mattos, ela própria pesquisadora de origem, manipula um vasto material de arquivo para tornar verossímil, ou pelo menos possível, essa insólita amizade. Afinal, parece que o jovem Ho Chi Minh esteve de fato no Rio, como tripulante de um navio, no início da segunda década do século vinte.

A progressão do filme é bastante irregular, alternando momentos inspirados, registros históricos preciosos e uma certa dispersão na parte referente ao “making of” da pesquisa e na representação da vida íntima e familiar de Faca Cega.

Antes mesmo de ser declarado em cena (e num letreiro final) que se trata de uma obra de ficção, o espectador começa a desconfiar do acúmulo de coincidências e de cruzamentos históricos, numa espiral imaginativa que parece não ter limites.

De acordo com o filme, Faca Cega, depois de participar da célebre Revolta da Chibata, de 1910, teria conhecido o jovem vietnamita no porão de um navio, onde ambos trabalhavam na cozinha. Aí começam as histórias prodigiosas: Faca Cega teria não apenas convertido o amigo ao comunismo como até mesmo inventado seu novo nome (o de batismo era Nguyen Sinh Cung).

Criação de realidades

A temporada de Ho Chi Minh no Rio é um verdadeiro roteiro turístico-cultural da cidade, com direito a visita ao terreiro da Tia Ciata, tido como berço do samba, a jogos de futebol e desfiles de carnaval. E Faca Cega, de acordo com o neto, participou de todos os momentos decisivos da história da cidade. Foi até operador do recém-inaugurado (1912) bondinho do Pão de Açúcar.

O filme cresce quando apresenta imagens documentais vibrantes, como as das guerras da Indochina (contra os franceses) e do Vietnã (contra os americanos) ou do encontro entre Ho Chi Minh e Mao Tsé Tung, e se enfraquece um pouco nas conversas encenadas “de bastidores” entre Luiz Pilar e a diretora Cláudia Mattos. É compreensível a ideia de criar uma instância de ironia e questionamento do estatuto documental, mas em alguns momentos isso tende a se sobrepor à encantadora fábula contada.

Com todas as suas ocasionais deficiências e irregularidades, O Rio de Janeiro de Ho Chi Minh é uma ode à imaginação e à capacidade do cinema de criar realidades e não apenas de retratá-las. Não chega a ser um “mockumentary” – o pseudodocumentário satírico à maneira do Zelig de Woody Allen –, mas segue uma linha semelhante de investimento na especulação e na fantasia.

Seguindo todos os protocolos

Se o filme de Cláudia Mattos é um falso documentário, talvez Seguindo todos os protocolos, de Fábio Leal, em cartaz nos cinemas do IMS, possa ser definido como um falso home movie. Se o primeiro abraça o mundo, o segundo se concentra num único apartamento, o do protagonista Chico (o próprio Fábio Leal).

A narrativa é conduzida pelo ator e diretor Luiz Pilar, que seria neto de Faca Cega e estaria colhendo dados e depoimentos sobre o avô e sua relação com Ho Chi Minh. A diretora Cláudia Mattos, ela própria pesquisadora de origem, manipula um vasto material de arquivo para tornar verossímil, ou pelo menos possível, essa insólita amizade. Afinal, parece que o jovem Ho Chi Minh esteve de fato no Rio, como tripulante de um navio, no início da segunda década do século vinte.

A progressão do filme é bastante irregular, alternando momentos inspirados, registros históricos preciosos e uma certa dispersão na parte referente ao “making of” da pesquisa e na representação da vida íntima e familiar de Faca Cega.

Antes mesmo de ser declarado em cena (e num letreiro final) que se trata de uma obra de ficção, o espectador começa a desconfiar do acúmulo de coincidências e de cruzamentos históricos, numa espiral imaginativa que parece não ter limites.

De acordo com o filme, Faca Cega, depois de participar da célebre Revolta da Chibata, de 1910, teria conhecido o jovem vietnamita no porão de um navio, onde ambos trabalhavam na cozinha. Aí começam as histórias prodigiosas: Faca Cega teria não apenas convertido o amigo ao comunismo como até mesmo inventado seu novo nome (o de batismo era Nguyen Sinh Cung).

Criação de realidades

A temporada de Ho Chi Minh no Rio é um verdadeiro roteiro turístico-cultural da cidade, com direito a visita ao terreiro da Tia Ciata, tido como berço do samba, a jogos de futebol e desfiles de carnaval. E Faca Cega, de acordo com o neto, participou de todos os momentos decisivos da história da cidade. Foi até operador do recém-inaugurado (1912) bondinho do Pão de Açúcar.

O filme cresce quando apresenta imagens documentais vibrantes, como as das guerras da Indochina (contra os franceses) e do Vietnã (contra os americanos) ou do encontro entre Ho Chi Minh e Mao Tsé Tung, e se enfraquece um pouco nas conversas encenadas “de bastidores” entre Luiz Pilar e a diretora Cláudia Mattos. É compreensível a ideia de criar uma instância de ironia e questionamento do estatuto documental, mas em alguns momentos isso tende a se sobrepor à encantadora fábula contada.

Com todas as suas ocasionais deficiências e irregularidades, O Rio de Janeiro de Ho Chi Minh é uma ode à imaginação e à capacidade do cinema de criar realidades e não apenas de retratá-las. Não chega a ser um “mockumentary” – o pseudodocumentário satírico à maneira do Zelig de Woody Allen –, mas segue uma linha semelhante de investimento na especulação e na fantasia.

Seguindo todos os protocolos

Se o filme de Cláudia Mattos é um falso documentário, talvez Seguindo todos os protocolos, de Fábio Leal, em cartaz nos cinemas do IMS, possa ser definido como um falso home movie. Se o primeiro abraça o mundo, o segundo se concentra num único apartamento, o do protagonista Chico (o próprio Fábio Leal).

Construído como se fosse um diário do confinamento na pandemia de covid, o filme narra o dia a dia de Chico e seus relacionamentos, virtuais e carnais, com outros homens. A ação se passa no auge da pandemia, quando ainda não havia vacinas e o contágio assumia ares de terror.

Chico é um obcecado pelos protocolos de segurança, a ponto de telefonar para o médico para dizer que, na única ocasião em que saiu de casa para ir à farmácia, teve a impressão de que sua máscara estava um pouco frouxa. Queria saber qual a probabilidade de ter sido contaminado.

Nesse contexto de medo e isolamento, a carência afetiva e o desejo sexual têm que encontrar meios de furar o bloqueio. Uma cena em que isso se revela de modo forte e inspirado é a da primeira visita de um amante ao apartamento. Chico preparara previamente o ambiente, com uma tela de tecido transparente que o separaria do visitante. Eles se limitariam à esfregação intermediada pela tela. Aos poucos, porém, a libido fala mais alto, e seguem-se os rasgos no tecido e o contato entre pele e pele – mas sem tirar as máscaras.

Na sua aparente singeleza, é um filme de uma riqueza humana profunda, além de tremendamente divertido. A obsessão do protagonista pelos protocolos de segurança, que chega a ser cômica e mesmo absurda, configura não tanto uma esquisitice ou mania, mas uma ética radical dos relacionamentos interpessoais e da consciência coletiva. É uma prova enviesada de amor – ao outro e a si próprio. Essa abordagem poética e moral transcende a circunstância histórica da pandemia. Vale para a vida em geral.

Rua Guaicurus

Outro híbrido de documentário e ficção, ou melhor, outra modalidade de simbiose entre essas duas coisas, encontra-se em Rua Guaicurus, de João Borges, que retrata “por dentro” um prostíbulo da mais tradicional zona de meretrício de Belo Horizonte.

Acompanhamos o cotidiano de um punhado de profissionais de várias idades, em suas horas de folga ou exercendo seu ofício. O roteiro é sagaz: a chegada de uma novata propicia uma explicação do funcionamento do trabalho por uma “veterana”, com coisas como o uso seguro do preservativo, o preço de cada ato (felação, penetração, masturbação, coito anal), as fantasias mais frequentes dos clientes, os cuidados de higiene, etc. São como instruções para o estagiário de uma empresa.

As conversas entre prostitutas mais velhas expõem um tanto dos percalços e perigos a que estão expostas, em relatos ora cômicos, ora tenebrosos de experiências vividas.

A parte mais forte e delicada do filme são as cenas de sexo. De acordo com o diretor, os clientes são representados por atores, dada a dificuldade da produção de conseguir a autorização dos clientes reais. Mas os atos em si (os fetiches, as posições, as falas) se baseiam em situações relatadas pelas próprias prostitutas.

O resultado é uma obra calorosa e envolvente, que mostra as “moças daquela rua” sem julgamento e sem romantismo, como seres humanos completos, ou antes, irremediavelmente incompletos, como todos nós.

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