Escolha uma Página

Por Veridiana Zurita

Chegamos na manifestação. Ela já tinha sido feita anteriormente e seus dirigentes repetiam o formato porque a primeira foi um sucesso. Eu chegava com um amigo, camarada, amante. Eramos reconhecidos como parte da resistência que se organizava na praça. Uma praça grande, aberta, com horizonte visível mas fora de foco. Nos aproximávamos de um dos grupos que ocupavam o espaço público. Cada grupo era um aglomerado de pessoas, todas de cócoras, com seus pertences no chão e entre as pernas. Me agachava, já não me lembro mais onde meu amigo estava, talvez em outro grupo. A camarada, dirigente do grupo que me acolheu, era negra, de tranças longas e um sorriso firme, calmo. Organizando o grupo ela dizia “a rua é nossa, a última manifestação deu certo, eles precisam entender que vamos ocupar e ficar, a rua somos nós”. Sua fala era certeira, confiante. Um aparato policial-militar massivo, organizado, com tanques de guerra, caminhões e helicópteros começava a se aproximar do território. Homens fardados de roupa preta, como robotcops, se organizavam em fileiras idênticas e subdivididas em grupos na parte mais aberta da praça. Enquanto a imagem que se formava parecia re-encenar desfiles nazifascistas, uma voz masculina nítida e de um alto falante invisível nos alertava “vamos nos posicionar e dar um tempo pra que vocês recuem, se não recuarem vamos avançar sem dó, o que vocês fizeram na primeira manifestação foi o limite, vocês não são humanos”. Imagens soltas da manifestação que inspirava essa pipocavam na minha cabeça; tinha sido violenta, teve fogo, bomba, agências bancárias e carros em chamas, mortes, confronto direto. Era sobre esse limite que a voz masculina e nítida, talvez de um robô, falava.

Continuávamos agachados e os fardados sua movimentação de aproximação organizada. Alguns helicópteros rondavam nossos grupos, seus soldados deslizavam por cordas, armados com cassetetes e metralhadoras, capacetes e ombreiras de material duro, aterrizavam suas botinas no chão e dispersavam. Apesar da coreografia ágil e aparentemente bem ensaiada, nenhum deles confrontava nossos grupos. Era como se não estivéssemos ali ou como se a movimentação do aparato policial se preparava para um confronto que viria depois. E naquela coreografia de eficiência repressiva nossos grupos contracenavam como coros que resistiam, agachados, estáticos.

A situação gerava ansiedade. Não conseguia acreditar que a movimentação dos fardados fosse inofensiva e tão pouco que nossa imobilidade momentânea pudesse evitar o confronto que se anunciava. Era como se ambos os lados; a resistência em pausa e a ameaça em movimento fossem suspeitas. Me levantava, inquieta, pra ver melhor. A dirigente me orientava “muita calma, essa movimentação dos fardados é cena, senta, quando eles terminarem a gente avança”. Mas caso não fosse cena e os fardados partissem pra cima seria preciso correr. Abria minha mochila e tirava tudo de dentro com medo que o excesso de peso ralentasse minha fuga. Mas não havia excesso, tudo ali era essencial, minha bagagem parecia precisa, fechava o zíper. Acordei.

Não vai dar pra analisar esse sonho de uma perspectiva pessoal, aplicar nele uma grade edipiana, fritar minha cabeça tentando descobrir quem são os fardados; se meu pai ou o núcleo familiar. Talvez eu pudesse surrar minha língua na terapia que não faço pra entender quem é a resistência em pausa; se eu ou a minha classe média-alta-branca que opta por ignorar o sofrimento alheio e acredita que desejar ir pra Miami nas férias imuniza qualquer consciência e responsabilidade do colapso tropical. Poderia especular por horas sobre quem é a camarada negra e de tranças; se minha culpa vazia de uma branquitude que não se organiza politicamente, se o discurso da representatividade cooptada pelo liberalismo de esquerda ou se a voz de um movimento que resiste historicamente e me implica na luta. Todas essas linhas de análise são possíveis entradas no sonho, que pode ser meu, sonhado por mim mas que me confronta com questões que transbordam dramas pessoais. Esse sonho aparece como cena de um possível inconsciente político do momento atual. Escolho usá-lo como grade pra analisar os dilemas político-eleitorais que já nos assombram antes mesmo de 2022 chegar. (Se é que chegará). Dilemas esses que não dou conta de fazer síntese. Dilemas que animam o debate com a repetição de desejos políticos esvaziados de realidade histórica. Dilemas que tem produzido debates surdos pela cacofonia de análises insuficientes. Diante do falatório me vejo muda, mas sonho. Sonho uma cena que precisa ser analisada por hipóteses, onde o sentido de cada personagem, agrupamento, movimentação precisa ser deslocado se quisermos mobilizar qualquer reflexão que valha a pena.

Façamos perguntas ao sonho.

Qual dos lados do embate configuram de fato a “cena”? O aparato policial-militar que se prepara para avançar? Ou a resistência em pausa na espera do momento certo para o embate? A pergunta tá errada. Não há lado que configure uma cena sem o outro que contracene dentro do roteiro. E quem é que escreve esse roteiro onde ambos os lados encenam o adiamento do embate? Adiamento que nutre e ameaça a mobilização no presente. Esse sonho traz lados, polarizados. “Esperar” o embate nutre lados que se retroalimentam enquanto funcionalidade da polarização; acentuar polos opositores e alinhavar uma terceira via. Quem são esses lados no sonho? Quem são os grupos agachados, em pausa, a espera do momento de “avançar”? Será o liberalismo de esquerda que vai cooptando partidos e movimentos sociais? Aquele que impõe seu horizonte na asfixia das linhas institucionais? Aquele que se diz socialista como selo de marketing digital mas recua e trai a radicalidade programática? E quem é a camarada dirigente, mulher negra, nesse roteiro? Será ela a voz de uma esquerda feminista-antirracista que diante da espetacularização de um fantoche genocida nos alerta que é melhor ignorar as cortinas de fumaça, não morder as iscas, e avançar depois? Ou será ela a presença simbólica de um identitarismo cooptado pela agenda liberal, que promete acesso aos instrumentos institucionais enquanto faz a manutenção de classes? Qual é a cena? Qual é o embate postergado por ambos os lados? E de fato a espera do embate é mútua? Minha ansiedade no sonho diria que não. A extrema direita não espera pra avançar sua agenda de desmonte, morte e miséria. Não há cena que simule a violência da policia militar a não ser nos bairros centrais das grandes cidades, onde a ficção da democracia ainda passa como realidade. E a versão palatável da extrema direita (aquela que justamente se nutre do extremismo pra encenar ponderação) se avizinha na social democracia e seus representantes do liberalismo de esquerda, num movimento de alianças pra garantir que a base econômica programática siga a mesma mas com roupagem política mais colorida. Que território é esse, a praça pública, onde o horizonte tá nitidamente fora de foco? Qual é a espera? Será essa a esquerda agachada e em pausa; a espera das eleições? E seus grupos subdivididos na praça publica, serão eles a frente ampla se enraizando enquanto fantasiada de unidade de ação contra Bolsonaro? Seria essa cena uma aliança entre o liberalismo de esquerda; acalmando as fúrias da luta de classes com a direita fantasiada de centro; simulando a contenção de sua violência econômica? Seria, a repetição de uma manifestação que já dera certo antes, um repeteco de carta ao povo?

Não há reflexão conclusiva aqui, a não ser uma insatisfação política que me trava os intestinos ao perceber a paralisia da esquerda, fadada a uma reatividade eleitoral que se tornou norma e parece implodir toda e qualquer capacidade de apresentar um programa alternativo ao capitalismo e sua versão neoliberal. E o pior, falar em alternativa ao capitalismo já é motivo de chacota, acusada de ingenuidade utópica, até mesmo dentro da esquerda que se diz socialista. E enquanto deixamos o enfrentamento pra depois, pra “depois avançar”, enfraquecidos pela ameaça de que agora “não é a hora certa”, a extrema direita avança, o centro renova suas figuras, surfando na onda oportunista e capitaneando as insatisfações políticas, o liberalismo de esquerda segue assentando sua institucionalidade e hegemonia e a esquerda socialista se digladia numa disputa interna entre pelegos e militância de base.

Talvez eu sonhe novamente esse sonho. Talvez eu sonhe com mais gente ao mesmo tempo pra poder tomar decisões de condução no dia seguinte. Se esse sonho aparecer de novo espero que os grupos de cócoras, agachados e em pausa, confabulem, furem o roteiro, desfaçam a cena do oponente e radicalizem sua presença pra fora de uma espera.

The post <i>Calma. É cena. Depois avançamos</i> appeared first on Outras Palavras.