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Imagem: Beppe Giacobbe

Em alguns círculos mais politizados (e mesmo nos menos politizados), uma determinada palavra adquiriu a importância de uma trincheira. Em uma batalha, a trincheira é um fosso que impede ou dificulta o avanço das tropas, mas serve ao mesmo tempo de abrigo contra as investidas do inimigo. Esse abrigo garante ou deve garantir a sobrevivência dos combatentes, porém, além de fornecer proteção, também é um recurso que permite situar, marcar e fixar posição no terreno. Com uma permanência prolongada, a trincheira pode deixar de ser mero abrigo para se tornar a perspectiva privilegiada a partir da qual devem ser tomadas as decisões táticas e estratégicas. Em um contexto não militar e em que os conflitos são mediados por meio do diálogo, a trincheira pode ser substituída por aquilo que hoje é conhecido como convicção.

A palavra convicção foi muito utilizada para se referir a uma fala atribuída ao procurador da República Deltan Dallagnol, conhecido por coordenar a Operação Lava Jato. Em uma coletiva de imprensa para apresentar as denúncias contra o ex-presidente Lula, Dallagnol teria dito: “não temos provas, mas temos convicção”. Como já noticiado por diversos canais da imprensa, essa fala não foi dita por Dallagnol, mas foi o resultado de uma justaposição e uma edição de sua fala com a fala do procurador Henrique Pozzobon. Enquanto Dallagnol havia afirmado ter convicção de que Lula liderava o esquema da Lava Jato, Pozzobon havia declarado não possuir provas cabais de que o tríplex do Guarujá era de propriedade de Lula.

Esse esclarecimento não diminui em nada as suspeitas e as dúvidas dirigidas contra a Operação Lava Jato. Algumas das decisões da força-tarefa da Polícia Federal foram alvo de críticas de diversos setores sociais, como as trocas de mensagens travadas entre o procurador (Dallagnol) e o juiz (Marcos Moro), divulgadas por uma parceria entre o The Intercept Brasil e outros canais de comunicação. Entretanto, não pretendo fazer uma revisão das desventuras da Operação Lava Jato, e sim destacar, na fala de Dallagnol, a importância adquirida pela palavra convicção.

Em certo sentido, a convicção é uma crença que, por estar suficientemente fundada em uma base objetiva, pode ser admitida por qualquer pessoa. Provas recolhidas da cena de um crime e vestígios materiais extraídos de um sítio arqueológico, por exemplo, podem fornecer o fundamento a partir do qual se pode sustentar uma convicção – como a identificação do criminoso ou a existência de uma civilização antiga. Vejam que, se os indícios objetivos fundamentam uma convicção, então sem esses mesmos indícios não há convicção. Assim, se verificamos uma convicção sem nenhum indício objetivo ou quando são selecionados indícios objetivos que fundamentem uma convicção previamente formada, podem ter certeza de que estamos diante de uma convicção corrompida. É justamente essa convicção corrompida que se transformou em uma trincheira em alguns atuais debates políticos.

Assim como a trincheira é avessa ao movimento das tropas, a convicção política, quando corrompida, é avessa ao movimento da vida. Nesse caso, não se trata mais de se debruçar sobre a realidade para formular novas e interessantes perspectivas políticas, e sim de cristalizar a perspectiva política, seja ela qual for, e observar somente aquilo que a confirma, ignorando o que a desmente. Ainda que movida por boas intenções ou nobres ideais, a convicção corrompida é a expressão de uma visão obtusa a respeito do movimento da vida e do fluxo social.

Nietzsche foi ainda mais radical. Em Humano, demasiado humano (1878), no aforismo 483, o filósofo alemão diz o seguinte: “Convicções são inimigos da verdade mais perigosos que as mentiras”. Pode parecer que Nietzsche tenha ido longe demais. As convicções não estariam baseadas na realidade objetiva? Na verdade, não. A convicção, pelo menos no sentido atual do termo, também envolve uma adesão subjetiva à crença ou opinião formada. A intensidade dessa adesão pode variar de acordo com a capacidade maior ou menor da convicção para explicar a realidade, mas, frequentemente, ocorre justamente o contrário: quanto mais é questionada, mais o indivíduo convicto se mantém fiel à convicção. É justamente esse fenômeno que vem se avolumando no debate político contemporâneo.

Para analisarmos esse estranho fenômeno, é necessário entender as convicções enquanto pontos de fixação no movimento da vida, um porto seguro que nos protege das variações no tempo e no espaço, um abrigo contra os argumentos de nossos adversários. Por outro lado, as convicções, principalmente as políticas, são referências que permitem ao indivíduo se posicionar de determinado modo na vida. Com essas referências, o indivíduo pode evitar a angústia trazida pela dificuldade de perguntas complexas e fornecer a elas respostas simples ou simplificadoras. Ao invés de lidar com as sutilezas e contradições da vida, o indivíduo prefere menosprezar sua importância justamente para não lidar com sua própria complexidade.

Evitar a complexidade da vida para não lidar com a própria complexidade, por fim, nos leva à derradeira questão deste artigo: a identificação do indivíduo pela convicção. A convicção não oferece apenas um recurso para evitar a complexidade de determinadas questões, mas também pode servir para o indivíduo como um documento de identidade. Esse documento de identidade define aquilo que o indivíduo é e aquilo que ele deve ser, independentemente das transformações ocorridas nas circunstâncias da vida. Em cada post e em cada debate, o indivíduo tem a oportunidade de reiterar sua identidade por meio da expressão de sua convicção, mais uma vez esperando fixar seu lugar estável em um mundo de instabilidades e se regozijando com o reflexo de si mesmo no espelho da consciência.

Pela capacidade de abrigar o indivíduo contra as intempéries da vida, de fornecer respostas simplificadoras para as questões complexas da existência e de definir para ele uma identidade, determinadas convicções políticas chegam a exercer a mesma função de algumas crenças religiosas. Essa interpretação, ao contrário de conduzir o indivíduo a uma conciliação de posicionamentos divergentes ou a um meio caminho entre dois extremos, nos faz lembrar que a convicção pode interromper um caminho que é concluído somente com a morte.

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