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Imagem: Valor Econômico

Há algumas semanas, fui atropelado por uma bicicleta – reconheço que, rigorosamente, não foi um “atropelamento”, pois a bicicleta não provocou minha queda nem passou por cima de mim (mas ficaria estranho dizer que “fui colidido” por uma bicicleta ou que “fui chocado”, imagem que me aproximaria de um frango). Enfim, eu estava correndo na faixa da direita em uma ciclovia quando percebi algumas dezenas de ciclistas se movendo no sentido contrário e, portanto, para a minha direção. A maioria dos ciclistas se movia pela faixa da direita, o que não alteraria em nada o meu percurso, mas como havia uma minoria que utilizava inclusive a faixa da esquerda, considerei necessário me manter o máximo possível no canto direito da faixa para evitar qualquer aborrecimento. No entanto, essa decisão não foi suficiente, e fui alvo de uma das bicicletas. Não caí, mas parei minha corrida e abri os braços para expressar meu espanto com aquele evento. O ciclista continuou sem olhar para trás, mas um outro ciclista passou por mim gritando “pelotão!”. Percebi que eu estaria mais seguro se saísse da ciclovia e fosse para a rua – para alcançar a calçada, seria necessário furar o pelotão, o que certamente me tornaria uma persona non grata para aqueles ciclistas (imaginem eu tentando fugir a pé de ciclistas acostumados a pedalar quilômetros…).

Talvez, o culpado nessa história tenha sido eu – apesar de também ser ciclista, eu não estava ali com minha bicicleta. Ciclovia é para bicicletas, enquanto a calçada é para pedestres. Não importa se seu objetivo é correr, caminhar, empurrar um carrinho de bebê ou passear com seu cachorro: se for pedestre, o consenso nos ensina que seu lugar é na calçada, correto? Errado. Recordei-me de uma experiência ocorrida há alguns meses quando estava correndo justamente na calçada, mas fui interrompido por um motorista que subiu na calçada e decidiu estacionar seu carro uns poucos metros à frente. Ao reduzir a velocidade e passar pelo carro, balancei a cabeça em sinal de reprovação. O motorista ligou seu carro, foi para a via, abriu sua janela, emparelhou comigo e, surpreendentemente, gritou para mim: “lugar de corrida é na ciclovia!”. Se estou na ciclovia, devo ir para a calçada; se estou na calçada, devo ir para a ciclovia: nem o existencialismo previu tamanho dilema.

O Código de Trânsito Brasileiro pode esclarecer esse enorme dilema. De acordo com essa lei, os veículos de maior porte devem zelar pelos veículos de menor porte; os veículos motorizados, pelos veículos não motorizados; e todos pelos pedestres, ou seja, o mais forte zela pela segurança do mais fraco. Independentemente de caminhar na calçada, na ciclovia ou na rua, o pedestre deveria receber proteção de todos os veículos, inclusive das bicicletas.

Com base nesse princípio universal, podemos dar por resolvido o problema da responsabilização do “quase atropelamento” na ciclovia: nada justifica nem legitima o choque sofrido por mim por conta de um ciclista. Enquanto pedestre, a minha segurança deveria ser zelada. No entanto, ainda permanece uma questão não resolvida: é legítimo um pedestre utilizar as ciclovias para caminhar ou correr, como eu havia feito? Como encaminhar a questão política da presença de pedestres nas ciclovias e, de modo mais geral, da condição do trânsito nas grandes cidades?

A discussão a respeito da presença de pedestres nas ciclovias não é uma novidade nem é consensual. A cicloativista Renata Falzoni, uma das ativistas pelos direitos do uso da bicicleta como meio de transporte mais antigas e reconhecidas do Brasil, no vídeo “Pedestre na ciclovia? Ciclista furando farol?”, localizado em seu canal do Youtube Bike é legal, partindo do princípio de que o mais forte deve zelar pela segurança do mais fraco, é favorável ao compartilhamento das ciclovias com pedestres. Ao contrário de sustentar um discurso de culpabilização, Renata prefere a responsabilização, perspectiva que incluiria todos na construção de um ambiente urbano mais seguro para o transporte.

Posicionamento divergente foi adotado pela Prefeitura Municipal de Santos em 2019. Uma campanha educativa mobilizada pela Companhia de Engenharia de Tráfego orientava a utilização exclusiva das ciclovias santistas pelos ciclistas, esclarecendo que essas vias não poderiam ser percorridas pelos pedestres, já que lugar de pedestre é na calçada. Essa campanha, no entanto, não estava direcionada somente aos pedestres nas ciclovias, mas também aos ciclistas que trafegavam nas vias com os carros mesmo quando havia ciclovias ou ciclofaixas no trajeto: se lugar de pedestre é na calçada, lugar de ciclista é na ciclovia. Tratava-se de uma campanha de esclarecimento a respeito do trânsito, não por interessar somente a um ou a outro grupo social, e sim porque se trata de um interesse comum de toda a cidade.

A responsabilização e/ou esclarecimento do trânsito enquanto coisa pública e objeto de interesse comum parece ser o caminho mais viável a uma política verdadeiramente democrática. A partir dessa perspectiva, a maneira como membros de cada grupo têm sustentado seu posicionamento a respeito dessa questão fica mais evidente. Quando se choca contra um pedestre sob o argumento de que ciclovia é para bicicletas, o ciclista está se comportando do mesmo modo como alguns motoristas se comportam em relação aos ciclistas nas vias de automóveis – com a enorme diferença de que na imensa maioria das vezes o atropelamento de um ciclista por um motorista pode ser fatal. Por outro lado, o pedestre que se apropria indevidamente da ciclovia, dificultando com seus pets ou com seu corpo a passagem de bicicletas, prefere se manter na ignorância de que essa via é uma oportunidade para viabilizar a bicicleta enquanto modal de transporte urbano.

Não seria possível concluir este artigo sem me referir à principal marca do trânsito nas grandes cidades, principalmente em São Paulo: a hostilidade. O quase atropelamento que eu sofri na ciclovia é uma metáfora. O conflito entre um ciclista e um pedestre não foi encaminhado pelo diálogo, e sim por meio da colisão e do grito. Essa hostilidade se manifesta de modo mais violento dos motoristas para os ciclistas e dos motoristas para os pedestres. A sensação de vulnerabilidade e de insegurança acaba se tornando generalizada. Enquanto não houver o reconhecimento de que o trânsito é um tema político, de interesse comum e que exige a implicação de todos, ainda poderemos atingir alguns avanços, mas sempre correndo o perigo de corromper as conquistas coletivas e transformá-las em prerrogativas individuais.

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